O suicídio acontece com muito mais frequência do que
imaginamos. Estima-se que uma pessoa se suicida a cada 40 segundos no mundo e a
cada 45 minutos no Brasil[1].
São 2160 suicídios por dia no mundo, sendo 32 deles no Brasil.
Parece-me algo que se encontra
insculpido no inconsciente coletivo da cristandade: “os suicidas não herdarão o
Reino dos Céus”. No entanto, não há base bíblica para se afirmar tal assertiva
com tanta convicção. Mormente, relaciona-se o suicídio ao homicídio, e como o
mandamento é taxativo em afirmar “Não matarás”, logo, ao dar cabo à própria
vida, o suicida assina seu passaporte para a condenação eterna. Certo? Errado.
Via de regra, imputa-se a perdição
eterna aos suicidas levando-se em consideração alguns dos casos bíblicos em que
o personagem pôs fim à própria existência. Vejamos:
1) Saul e seu escudeiro (I Samuel 31.1-5):
Entretanto, os filisteus pelejaram contra Israel, e, tendo os homens de
Israel fugido de diante dos filisteus, caíram feridos no monte Gilboa. Os
filisteus apertaram com Saul e seus filhos e mataram Jônatas, Abinadabe e
Malquisua, filhos de Saul. Agravou-se a peleja contra Saul; os flecheiros o
avistaram, e ele muito os temeu. Então, disse Saul ao seu escudeiro: Arranca a
tua espada e atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes
incircuncisos, e me traspassem, e escarneçam de mim. Porém o seu escudeiro não
o quis, porque temia muito; então, Saul tomou da espada e se lançou sobre ela.
Vendo, pois, o seu escudeiro que Saul já era morto, também ele se lançou sobre
a sua espada e morreu com ele.
Como sabemos, Saul levou uma vida
marcada por atos de desobediência. Conforme texto bíblico acima, suicidou-se
para não ser capturado pelos filisteus durante uma batalha cuja derrota era
iminente. O exato motivo de sua morte está registrado em I Crônicas 10.13,14:
Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra o
SENHOR, por causa da palavra do SENHOR, que ele não guardara; e também porque
interrogara e consultara uma necromante e não ao SENHOR, que, por isso, o matou
e transferiu o reino a Davi, filho de Jessé.
Um abismo chama outro abismo (Salmos 42.7). Os
abismos da vida de Saul culminaram com seu suicídio. Mas, e quanto a seu
escudeiro? A Bíblia não apresenta detalhes quanto à sua vida pregressa. Dessa
maneira, podem se tratar de dois casos totalmente distintos, ocorridos em um
pequeno intervalo: enquanto o primeiro foi o ápice de uma vida sem Deus, o
segundo pode ter sido meramente uma questão de desespero momentâneo.
2) Aitofel: avô de Bate-Seba, manteve ligação com o rei Davi,
até que o monarca adulterou com sua neta. Quando Absalão intentou tomar o reino
de seu pai, Aitofel conspirou contra Davi, solicitando um exército de doze mil
homens e autorização para persegui-lo. Absalão, porém, tomou conselho com Husai
e seguiu-o, por considerá-lo mais sábio. Então, “Vendo, pois, Aitofel que não fora seguido o seu conselho, albardou o
jumento, dispôs-se e foi para casa e para a sua cidade; pôs em ordem os seus
negócios e se enforcou; morreu e foi sepultado na sepultura do seu pai” (2
Samuel 17.23).
3) Judas Iscariotes: único suicida mencionado no Novo
Testamento, e provavelmente o caso mais conhecido da Bíblia – quiçá da História.
O referido personagem tornou-se mundialmente conhecido como o traidor e o filho
da perdição, muito embora Jesus Cristo tenha se entregado voluntariamente como
sacrifício por nossos pecados: “Por isso,
o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de
mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar
e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai” (João 10.17,18).
Quanto ao suicídio de Judas, temos
dois relatos. O primeiro está registrado no Evangelho segundo Mateus, 27.3-5, e
o segundo em Atos 1.16.20.
Então, Judas, o que o traiu, vendo
que Jesus fora condenado, tocado de remorso, devolveu as trinta moedas de prata
aos principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo: Pequei, traindo sangue
inocente. Eles, porém, responderam: Que nos importa? Isso é contigo. Então,
Judas, atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se e foi
enforcar-se. (Mateus 27.3-5)
Irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo
proferiu anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia
daqueles que prenderam Jesus, porque ele era contado entre nós e teve parte
neste ministério. (Ora, este homem adquiriu um campo com o preço da iniqüidade;
e, precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas as suas entranhas se
derramaram; e isto chegou ao conhecimento de todos os habitantes de Jerusalém,
de maneira que em sua própria língua esse campo era chamado Aceldama, isto é,
Campo de Sangue.) Porque está escrito no Livro dos Salmos: Fique deserta a sua
morada; e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu encargo. (Atos
1.16-20)
Concilia-se os dois relatos da
seguinte forma: Judas enforcou-se e, face à altura e posicionamento da forca,
após o ato a corda arrebentou-se, o que acarretou no rompimento de seu corpo já
sem vida e o consequentemente derramamento das entranhas. Não há qualquer
disparidade entre os textos, como apontam alguns.
Judas findou por ser o arquétipo do
suicida desafortunado e condenado.
4) Sansão: propositalmente, deixei-o por último. Isso porque,
por vezes, ele não é lembrado como um suicida, mas sim como um herói da fé,
digno de entrar na galeria de Hebreus 11 ao lado de Abel, Enoque, Noé, Abraão
Moisés, Samuel e outros.
Mormente também é lembrado como
aquele que, conquanto nazireu desde o ventre, separado para o serviço sagrado,
viu-se em conflito com o voto de nazireado ao longo de toda sua vida.
Resumindo a história: quando enfim
Dalila, a serviço dos filisteus, conseguiu convencê-lo a contar-lhe o segredo
de sua grande força, Sansão teve seu cabelo cortado com “máquina zero”, como
diríamos hoje, e então o Senhor retirou-se dele. A partir daí Sansão foi
aprisionado pelos filisteus e tornou-se motivo de escárnio dentre os inimigos.
Vejamos o que a Bíblia nos diz sobre seus últimos momentos:
Alegrando-se-lhes o coração,
disseram: Mandai vir Sansão, para que nos divirta. Trouxeram Sansão do cárcere,
o qual os divertia. Quando o fizeram estar em pé entre as colunas, disse Sansão
ao moço que o tinha pela mão: Deixa-me, para que apalpe as colunas em que se
sustém a casa, para que me encoste a elas.
Ora, a casa estava cheia de homens e mulheres, e também ali estavam todos
os príncipes dos filisteus; e sobre o teto havia uns três mil homens e
mulheres, que olhavam enquanto Sansão os divertia. Sansão clamou ao SENHOR e
disse: SENHOR Deus, peço-te que te lembres de mim, e dá-me força só esta vez, ó
Deus, para que me vingue dos filisteus, ao menos por um dos meus olhos.
Abraçou-se, pois, Sansão com as duas colunas do meio, em que se sustinha a
casa, e fez força sobre elas, com a mão direita em uma e com a esquerda na
outra. E disse: Morra eu com os
filisteus. E inclinou-se com força, e a casa caiu sobre os príncipes e
sobre todo o povo que nela estava; e foram mais os que matou na sua morte do
que os que matara na sua vida. Então, seus irmãos desceram, e toda a casa de
seu pai, tomaram-no, subiram com ele e o sepultaram entre Zorá e Estaol, no
sepulcro de Manoá, seu pai. Julgou ele a Israel vinte anos. [grifei] (Juízes
16.25-31)
Cometeu suicídio, mas tornou-se
conhecido como um herói da fé.
Como vimos anteriormente, conquanto o
apóstolo Paulo tenha demonstrado opinião tendente a favorecer a pena de morte,
quanto ao suicídio era contrário. Por exemplo, quando suas cadeias foram
rompidas enquanto ele e Silas louvavam a Deus no cárcere em Filipos e até mesmo
os alicerces da prisão foram abalados por um terremoto na ocasião, o carcereiro
intentou suicidar-se, temendo que os prisioneiros tivessem fugido, pelo que
Paulo interpelou-o em alta voz: “Não te
faças nenhum mal, que todos aqui estamos!” (Atos 16.25-28).
Escrevendo aos Coríntios, o apóstolo
dos gentios questiona: “Não sabeis que
sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém
destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que
sois vós, é sagrado” (I Coríntios 3.16,17). E afirma: “Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que
está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?”
(I Coríntios 3.16,17).
Ao traçar a analogia entre o
relacionamento esposo/esposa e Cristo/Igreja, Paulo emite outro questionamento:
“[...] Quem ama a esposa a si mesmo se
ama. Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela
cuida, como também Cristo o faz com a igreja” (Efésios 5.28,29).
Todavia, ao longo das Escrituras
encontramos alguns servos de Deus de notória e exemplar espiritualidade que,
quando deparados com um sofrimento extremo, desejaram ardentemente a morte.
Davi, Elias, Jó, Jonas, Jeremias, Moisés. As causas que os levaram ao quadro de
depressão são variadas: pecados próprios, pecados da nação, enfermidade,
perseguição, desobediência.
Lembremos que o próprio Jesus Cristo
afirmou em certa ocasião, quando prestes a ser preso e iniciar seu martírio: “A minha alma está profundamente triste até
à morte” (Mateus 26.38; Marcos 14.34). Lucas nos relata que, nessa mesma
ocasião, “Então, lhe apareceu um anjo do
céu que o confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E
aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra”.
(Lucas 22.43,44)
Diante disso, oportuno lembrarmos o
que diz o escritor da Carta aos Hebreus: “Porque
não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas;
antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado”
(Hebreus 4.15).
Sim, ele passou pelas mesmas aflições
que nós, por isso sente compaixão quando apresentamos fraqueza ante as
dificuldades. Com seu ato extremo, o suicida não intenta simplesmente acabar com
sua vida, mas sim fazer findar o sofrimento. Como bem disse Hernandes Dias
Lopes, “há muitas causas que ainda
permanecem escondidas no recôndito da alma humana, as quais só Deus, que
perscruta os corações, pode diagnosticar”[2].
A Bíblia nos afirma que há um pecado
imperdoável: “Mas aquele que blasfemar
contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado
eterno” (Marcos 3.29).
Zack Eswine faz a seguinte observação
a respeito do suicídio e o pecado imperdoável:
O suicídio não é o pecado
imperdoável. O seguidor de Jesus não está perdido por causa desse ato hediondo.
Isso dá, a nós que permanecemos, esperança para com aqueles que amamos.
E, no entanto, as tristes
consequências permanecem, não só para aqueles que escolheram o suicídio, mas
para aqueles que os amavam e foram deixados para trás. Assim como outros
pecados estão pagos por Cristo, esse, da mesma forma, também está. Contudo,
assim como outros pecados causam danos a nós mesmos e aos outros, esse não é
exceção.
Perdemos o futuro que poderíamos ter conhecido. Infligimos danos terríveis
àqueles que nos amam e a quem amamos. Entregamo-nos às próprias coisas das
quais Jesus nos salvou por sua morte. Perdoado e em casa com ele, sim! Sim!
Porém muito ainda deve ser pago e curado por Jesus.[3]
Portanto, não sejamos juízes para
condenarmos sumariamente ao inferno aqueles que colocam um ponto final à
própria existência terrena. Há um só Legislador e Juiz (Tiago 4.12). E nós,
quem somos?
Soli Deo Gloria
Alessandro Silva
(A presente postagem trata-se de um trecho de meu livro "Matar e morrer à luz das Escrituras". Para adquiri-lo, clique aqui.)
[1] Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/05/25/a-cada-45-minutos-uma-pessoa-se-suicida-no-brasil-dizem-especialistas-na-cas.
Acesso em 23 de novembro de 2018.
[2] Lopes, Hernandes Dias. “Suicídio – causas, mitos e
prevenções”, p. 119.
[3] Eswine, Zack. A Depressão de Spurgeon, p. 170.
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Que Deus muito o abençoe.