A frase em epígrafe trata-se de uma das expressões
mais controversas do Novo Testamento, devido à sua difícil
compreensão. Está contida, implícita ou explicitamente,
principalmente nos seguintes textos:
Pois também Cristo morreu, uma
única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos
a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual
também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro
tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava
nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a
saber, oito pessoas, foram salvos, através da água (...).
(2 Pedro 3.18-20)
Ora, se Deus não poupou anjos
quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a
abismos de trevas, reservando-os para juízo (...).
(2 Pedro 2.4)

Algumas possibilidades acerca do
tema foram sugeridas ao longo da história da Igreja. Vejamos
exemplos:
1) Jesus
pregou por intermédio de Noé aos habitantes pré-diluvianos da
Terra: ou seja, anunciou a
possibilidade de salvação aos contemporâneos do patriarca enquanto
os mesmos estavam vivos. Chamou-os ao arrependimento. Mostrou o
caminho a ser seguido para escapar da perdição. Porém, como
sabemos, aqueles homens fizeram ouvidos moucos às benditas palavras
e ao exemplo de Noé e, como consequência, todos pereceram no
dilúvio, exceto o patriarca e sete pessoas próximas a ele.
Muito embora o texto de Gênesis 6
não faça menção à pregação de Noé, deduzimos que ela tenha
ocorrido com base em textos do Novo Testamento. Exemplos: Mateus
24.37-42; I Pedro 3.20; II Pedro 2.5. Ainda que não utilizando
palavras, seu testemunho de vida era o anúncio.
Podemos conjecturar que, àquela
época, os oito tripulantes da arca foram os únicos eleitos para a
salvação, uma vez que em Gênesis 6.3 o SENHOR afirma: “Farei
desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal,
os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver
feito”. Logo, todo o restante da
humanidade daquele período hoje encontra-se no inferno. Seriam os
“espíritos em prisão”.
2) Uma
segunda posição afirma que, no período entre sua morte e
ressurreição, Jesus literalmente pregou àqueles que se encontram
no Hades, principalmente aqueles que rejeitaram a salvação à época
de Noé. O problema dessa
interpretação é que dá azo para uma segunda chance de salvação
após a morte, fornecendo subsídio para os defensores do purgatório
e contradizendo Hebreus 9.27: “E,
assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo,
depois disto, o juízo (...)”.
Assim, outra possibilidade é que Cristo tenha ali anunciado sua
vitória, bem como a condenação eterna daqueles que partiram para o
além sem n’Ele crer. Sobre o referido versículo, João Calvino
faz a seguinte observação:
Se alguém contestar, dizendo que
alguns morreram duas vezes, como sucedeu a Lázaro e a outros, a
resposta é simplesmente esta: aqui o apóstolo está falando da
condição ordinária dos homens, porém isenta dessa condição os
que, por uma súbita mudança, foram poupados da corrupção (I Co
15.51), já que o apóstolo inclui somente aqueles que se encontram
no pó por um longo período de tempo, aguardando a redenção de
seus corpos.1
Tal posição fornece a base para
uma das cláusulas do Credo Apostólico: “Desceu à mansão dos
mortos”.
Quanto a tal cláusula, em seu
artigo “Descendit ad Inferna:
Uma análise da expressão ‘Desceu ao Hades’ no Cristianismo
Histórico”2,
o pastor presbiteriano Heber Carlos de Campos nos informa que
(...) originalmente a expressão
'descendit ad inferna' não fazia parte do Credo Apostólico. No
tempo de Rufino, ela apareceu inserida no Credo, mas não como um
acréscimo ao que já havia, sendo apenas uma expressão substitutiva
de “crucificado, morto e sepultado.” O Credo de Atanásio
(escrito por volta do século V ou
VI) segue mais ou menos a mesma ideia do Credo de Aquiléia, onde a
expressão 'desceu ao Hades' substitui a expressão 'sepultado', não
sendo um acréscimo a ela. Até então, não havia nenhuma
modificação significativa na doutrina cristã com respeito à
situação da pessoa do Redentor ao morrer, pelo menos nas traduções
mais conhecidas do Credo.
Mais adiante, o autor aponta que
A doutrina, que usualmente é
chamada de “Descida ao Hades”, desenvolveu-se de forma efetiva na
igreja cristã com o passar dos séculos, numa tentativa de reviver a
doutrina pagã do Hades. Dentro do pensamento grego havia um lugar
para onde iam todos os mortos — o Hades. Este era dividido em dois
setores: o Elísio
(para onde iam todos os bons) e o Tártaro
(para onde iam todos os maus). Essa idéia greco-pagã é
razoavelmente coerente, pois pelo menos os maus iam para o lugar
chamado inferno, que é uma das traduções de Tártaro,
e os bons iam para o paraíso, que é a tradução de Elísio.
A passagem bíblica contida em
Lucas 16.19-31 tem sido utilizada para chancelar o pensamento acima
em alguns segmentos cristãos. No referido texto, Jesus que nos dá
informações extremamente relevantes quanto à vida futura. Quanto
ao céu e ao inferno. Quanto ao gozo e quanto ao sofrimento eterno.
Trata-se da história do Rico e Lázaro. Lembremos:
Ora, havia certo homem rico que
se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se
regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado
Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava
alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães
vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser
levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e
foi sepultado.
No inferno, estando em
tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no
seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de
mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me
refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse,
porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em
tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele
está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um
grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar
daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós.
Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa
paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a
fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu
Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos.
Mas ele insistiu: Não, pai
Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a
Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que
ressuscite alguém dentre os mortos.
(Lucas 16.19-31)
Do texto em apreço podemos
extrair, dentre outras, as seguintes lições a respeito do inferno:
I) As almas que ali se encontram
são atormentadas: "No inferno,
estando em tormentos".
II) Não obstante, quem ali
estiver terá consciência de que os salvos estarão em regozijo e
paz: "Viu ao longe a Abraão e
Lázaro no seu seio".
III) Não haverá consolo para
seus habitantes: "Aqui, ele
(Lázaro) está consolado; tu, em tormentos".
IV) Uma vez no inferno,
eternamente no inferno: "Os que
querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar
para nós."
V) Os perdidos clamarão, mas não
serão ouvidos: "Eu te imploro".
VI) Já não restarão boas
lembranças, bem como será impossível auxiliar os parentes para que
também não venham a ir para o inferno.
Quanto à ideia de que o Hades
possuía dois “compartimentos”, seus defensores depreendem com
base versículo 23: o rico encontrava-se no inferno, e Lázaro junto
de Abraão. Conquanto tivessem contato visual, havia entre os locais
um abismo intransponível (versículo 26). Tal doutrina é piamente
aceita no meio pentecostal.
No entanto, tal pensamento deve
ser rejeitado, pois a crença reformada está ancorada no fato de que
há dois locais para onde vão os mortos: os que não creram em
Cristo diretamente são alocados no inferno, onde aguardam o Juízo
Final; já os que morreram no Senhor vão imediatamente estar com
Ele. Como exemplo, citemos:
a) As palavras de Jesus proferidas
ao ladrão arrependido na cruz: “Jesus
lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
paraíso.” (Lucas 23.43)
b) E Paulo escrevendo aos
Filipenses: “Ora, de um e outro
lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com
Cristo, o que é incomparavelmente melhor.”
(Filipenses 1.23)
3) Uma
versão semelhante à segunda apresenta a possibilidade de Jesus ter
proclamado sua vitória aos anjos caídos e, por conseguinte, a
derrota eterna dos mesmos.
O maior problema dessa versão não
reside no fato de Jesus ter pregado aos espíritos em prisão, o que
é líquido e certo uma vez que as Escrituras assim nos asseguram,
mas sim sobre quem são esses anjos caídos. Algumas teorias têm
sido apresentadas ao longo da História, sem, contudo, podermos
chegar a um denominador comum.
Em seu artigo “Revisitando os
Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6”3,
Leandro Lima aponta que “muitos dos
primeiros pais da igreja seguiram a interpretação judaica que
relacionava espíritos aprisionados com anjos que haviam se
relacionado com mulheres antes do dilúvio, conforme relata o texto
de Gênesis 6.1-2.3”. Para
ratificar sua fala, cita a posição de Justino Mártir (100-165
d.C.), Irineu de Lião (130-202 d.C.), Clemente de Alexandria
(150-215 d.C.), Orígenes (c. 185 d.C.) e Tertuliano (160-220 d.C).
Para o judeu messiânico David H.
Stern,
Os espíritos
aprisionados são os “anjos que
pecaram” (2 Pe 2.4) e “não mantiveram sua autoridade originária”
(Jd 6). Isto é, eles são os b’nei-ha’elohim
(filhos de Deus os filhos dos anjos), também chamados nefilim
(caídos), que caíram de sua própria esfera, o céu, para a terra,
e “vendo (...) que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para
si mulheres” nos dias de Noach
(Gênesis 6.2-4).4
(Negritos do autor)
Sobre a queda dos anjos,
comentando 2 Pedro 2.4, Calvino afirma que
Muitos homens são curiosos e
fazem intermináveis investigações sobre essas coisas; visto,
porém, que Deus, na Escritura, tocou só de leve nelas, e, por assim
dizer, no que interessava, assim ele nos lembra que devemos viver
satisfeitos com este pequeno conhecimento. 5
Relembremos o que nos diz o texto
de Gênesis 6.1-4:
Como se foram multiplicando os
homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que
as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que,
entre todas, mais lhes agradaram. Então, disse o SENHOR: O meu
Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os
seus dias serão cento e vinte anos. Ora, naquele tempo havia
gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus
possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; estes
foram valentes, varões de renome, na antiguidade.
Para os “filhos de Deus” do
texto supra, há duas principais interpretações, quais sejam:
I) Trata-se dos descendentes da
linhagem piedosa de Sete, em contraposição à linhagem ímpia de
Caim denominada “filhos dos homens”. É a versão mais aceita
atualmente dentre a cristandade, creio que não apenas por convicção
com bases textuais, mas principalmente pela dificuldade em adotar o
posicionamento a seguir apresentado.
II) Diz respeito ao anjos, que
cobiçaram as mulheres da Terra e com elas mantiveram relações
sexuais, dando origem aos gigantes apresentados no versículo 4.
Como argumento favorável à
posição de que os filhos de Deus a que se referem Gênesis 6 são
os anjos, temos dois versículos do Antigo Testamento, a propósito
os dois únicos versículos veterotestamentários que apresentam a
expressão "filhos de Deus".
São eles:
Num dia em que os filhos de
Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás
entre eles. (Jó 1.6)
Tributai ao SENHOR, filhos de
Deus, tributai ao SENHOR glória e força.
(Salmos 29.1)
Embora somente Jó 1.6 se refira
aos seres angelicais de maneira explícita, o contexto de Salmos 29.1
nos leva a depreender que a ordem, em primeira instância, é
direcionada a uma assembleia celestial.
Tal posicionamento está também
presente na tradição rabínica.
Por outro lado, os que adotam a
posição contrária se pautam nas palavras de Jesus registradas em
Lucas 20.35,36:
Mas os que são havidos por
dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os
mortos não casam, nem se dão em casamento. Pois não podem mais
morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sendo
filhos da ressurreição.
Porém, notemos que a Palavra não
nos diz com clareza que as criaturas angélicas são assexuadas, mas
apenas que "não casam, nem se
dão em casamento". Ademais,
outros textos bíblicos nos indicam que tais seres podem
perfeitamente assumir a forma humana e agir como nós.6
Quanto à possibilidade de os
anjos que pecaram estarem em uma prisão real, João Calvino
apresenta a seguinte opinião:
Mas não devemos imaginar um
determinado lugar onde os demônios se encontram encerrados, pois o
apóstolo simplesmente tencionava ensinar-nos quão miserável é sua
condição, desde o tempo em que apostataram e perderam sua
dignidade. Pois aonde quer que vão, arrastam após si suas próprias
cadeias, e permanecem envoltos em trevas. Sua extrema punição é,
entretanto, deferida até o grande dia vindouro.7
Concordo com o questionamento de
VanGemeren8,
citado pelo Reverendo Leandro Lima, no artigo já mencionado: "Por
que cristãos que creem em tantos fatos sobrenaturais da Bíblia têm
dificuldade em crer que, de algum modo, anjos caídos se relacionaram
com mulheres e foram punidos por Deus?"
Outro texto frequentemente citado
com o objetivo de ratificar a descida de Cristo ao Hades é Efésios
4.9,10: “Ora, que quer dizer subiu,
senão que também havia descido até às regiões inferiores da
terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos
os céus, para encher todas as coisas.”
Calvino, no entanto, discorda dessa posição. Para o teólogo,
quanto às “regiões inferiores da terra”,
Estas palavras nada mais
significam que a condição da presente vida. Torturá-las a ponto de
fazê-las significar o purgatório ou o inferno, constitui uma
excessiva estultícia. O argumento que extraem do grau comparativo é
por demais frágil. Aqui se traça uma comparação, não entre uma e
outra parte da terra, mas entre a totalidade da terra e do céu; como
se ele quisesse dizer: “Daquela sublime habitação, Cristo desceu
ao nosso profundo abismo. ”9
Particularmente, entendo que o
pensamento que mais se adequa à fé cristã e ao contexto da
passagem é o primeiro apresentado no presente capítulo: Jesus
pregou por intermédio de Noé aos habitantes pré-diluvianos da
Terra.
Mas fato é que há várias
vertentes teológicas que tentam explicar tais passagens bíblicas,
as quais apontam para a descida de Cristo ao Hades. Católicos,
Luteranos, Anglicanos, Reformados, Arminianos, cada um com seu ponto
de vista, e com seus textos bíblicos selecionados com o escopo de
justificar seu posicionamento. Como eu disse no início do presente
capítulo, trata-se de um dos textos mais controversos do Novo
Testamento. Graças a Deus que nossa salvação não está atrelada à
plena compreensão de tais passagens.
1João
Calvino. “Hebreus”,
p. 238.
2Revista
Fides Reformata 4/1, 1999.
3
Revista Fides Reformata XXI N.º 1, 2016.
4
David H. Stern. “Comentário Judaico do Novo Testamento”, p.
820.
5
João Calvino. “Comentário das Epístolas Gerais”, p. 323.
6Exemplos:
Gênesis 18.7-8 e Hebreus 13.2.
7João
Calvino. “Comentário
das Epístolas Gerais”, p. 508.