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domingo, 7 de abril de 2019

Jesus pregou aos espíritos em prisão?


A frase em epígrafe trata-se de uma das expressões mais controversas do Novo Testamento, devido à sua difícil compreensão. Está contida, implícita ou explicitamente, principalmente nos seguintes textos:

Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água (...). (2 Pedro 3.18-20)

Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo (...). (2 Pedro 2.4)

Resultado de imagem para trevas (...) e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia (...). (Judas 6)

Algumas possibilidades acerca do tema foram sugeridas ao longo da história da Igreja. Vejamos exemplos:

1) Jesus pregou por intermédio de Noé aos habitantes pré-diluvianos da Terra: ou seja, anunciou a possibilidade de salvação aos contemporâneos do patriarca enquanto os mesmos estavam vivos. Chamou-os ao arrependimento. Mostrou o caminho a ser seguido para escapar da perdição. Porém, como sabemos, aqueles homens fizeram ouvidos moucos às benditas palavras e ao exemplo de Noé e, como consequência, todos pereceram no dilúvio, exceto o patriarca e sete pessoas próximas a ele.
Muito embora o texto de Gênesis 6 não faça menção à pregação de Noé, deduzimos que ela tenha ocorrido com base em textos do Novo Testamento. Exemplos: Mateus 24.37-42; I Pedro 3.20; II Pedro 2.5. Ainda que não utilizando palavras, seu testemunho de vida era o anúncio.
Podemos conjecturar que, àquela época, os oito tripulantes da arca foram os únicos eleitos para a salvação, uma vez que em Gênesis 6.3 o SENHOR afirma: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito”. Logo, todo o restante da humanidade daquele período hoje encontra-se no inferno. Seriam os “espíritos em prisão”.
2) Uma segunda posição afirma que, no período entre sua morte e ressurreição, Jesus literalmente pregou àqueles que se encontram no Hades, principalmente aqueles que rejeitaram a salvação à época de Noé. O problema dessa interpretação é que dá azo para uma segunda chance de salvação após a morte, fornecendo subsídio para os defensores do purgatório e contradizendo Hebreus 9.27: “E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo (...)”. Assim, outra possibilidade é que Cristo tenha ali anunciado sua vitória, bem como a condenação eterna daqueles que partiram para o além sem n’Ele crer. Sobre o referido versículo, João Calvino faz a seguinte observação:
Se alguém contestar, dizendo que alguns morreram duas vezes, como sucedeu a Lázaro e a outros, a resposta é simplesmente esta: aqui o apóstolo está falando da condição ordinária dos homens, porém isenta dessa condição os que, por uma súbita mudança, foram poupados da corrupção (I Co 15.51), já que o apóstolo inclui somente aqueles que se encontram no pó por um longo período de tempo, aguardando a redenção de seus corpos.1
Tal posição fornece a base para uma das cláusulas do Credo Apostólico: “Desceu à mansão dos mortos”.
Quanto a tal cláusula, em seu artigo “Descendit ad Inferna: Uma análise da expressão ‘Desceu ao Hades’ no Cristianismo Histórico”2, o pastor presbiteriano Heber Carlos de Campos nos informa que
(...) originalmente a expressão 'descendit ad inferna' não fazia parte do Credo Apostólico. No tempo de Rufino, ela apareceu inserida no Credo, mas não como um acréscimo ao que já havia, sendo apenas uma expressão substitutiva de “crucificado, morto e sepultado.” O Credo de Atanásio (escrito por volta do século V ou VI) segue mais ou menos a mesma ideia do Credo de Aquiléia, onde a expressão 'desceu ao Hades' substitui a expressão 'sepultado', não sendo um acréscimo a ela. Até então, não havia nenhuma modificação significativa na doutrina cristã com respeito à situação da pessoa do Redentor ao morrer, pelo menos nas traduções mais conhecidas do Credo.
Mais adiante, o autor aponta que
A doutrina, que usualmente é chamada de “Descida ao Hades”, desenvolveu-se de forma efetiva na igreja cristã com o passar dos séculos, numa tentativa de reviver a doutrina pagã do Hades. Dentro do pensamento grego havia um lugar para onde iam todos os mortos — o Hades. Este era dividido em dois setores: o Elísio (para onde iam todos os bons) e o Tártaro (para onde iam todos os maus). Essa idéia greco-pagã é razoavelmente coerente, pois pelo menos os maus iam para o lugar chamado inferno, que é uma das traduções de Tártaro, e os bons iam para o paraíso, que é a tradução de Elísio.
A passagem bíblica contida em Lucas 16.19-31 tem sido utilizada para chancelar o pensamento acima em alguns segmentos cristãos. No referido texto, Jesus que nos dá informações extremamente relevantes quanto à vida futura. Quanto ao céu e ao inferno. Quanto ao gozo e quanto ao sofrimento eterno. Trata-se da história do Rico e Lázaro. Lembremos:
Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado.
No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos.
Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos. (Lucas 16.19-31)
Do texto em apreço podemos extrair, dentre outras, as seguintes lições a respeito do inferno:
I) As almas que ali se encontram são atormentadas: "No inferno, estando em tormentos".
II) Não obstante, quem ali estiver terá consciência de que os salvos estarão em regozijo e paz: "Viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio".
III) Não haverá consolo para seus habitantes: "Aqui, ele (Lázaro) está consolado; tu, em tormentos".
IV) Uma vez no inferno, eternamente no inferno: "Os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós."
V) Os perdidos clamarão, mas não serão ouvidos: "Eu te imploro".
VI) Já não restarão boas lembranças, bem como será impossível auxiliar os parentes para que também não venham a ir para o inferno.

Quanto à ideia de que o Hades possuía dois “compartimentos”, seus defensores depreendem com base versículo 23: o rico encontrava-se no inferno, e Lázaro junto de Abraão. Conquanto tivessem contato visual, havia entre os locais um abismo intransponível (versículo 26). Tal doutrina é piamente aceita no meio pentecostal.
No entanto, tal pensamento deve ser rejeitado, pois a crença reformada está ancorada no fato de que há dois locais para onde vão os mortos: os que não creram em Cristo diretamente são alocados no inferno, onde aguardam o Juízo Final; já os que morreram no Senhor vão imediatamente estar com Ele. Como exemplo, citemos:
a) As palavras de Jesus proferidas ao ladrão arrependido na cruz: “Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.” (Lucas 23.43)
b) E Paulo escrevendo aos Filipenses: “Ora, de um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor.” (Filipenses 1.23)

3) Uma versão semelhante à segunda apresenta a possibilidade de Jesus ter proclamado sua vitória aos anjos caídos e, por conseguinte, a derrota eterna dos mesmos.
O maior problema dessa versão não reside no fato de Jesus ter pregado aos espíritos em prisão, o que é líquido e certo uma vez que as Escrituras assim nos asseguram, mas sim sobre quem são esses anjos caídos. Algumas teorias têm sido apresentadas ao longo da História, sem, contudo, podermos chegar a um denominador comum.
Em seu artigo “Revisitando os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6”3, Leandro Lima aponta que “muitos dos primeiros pais da igreja seguiram a interpretação judaica que relacionava espíritos aprisionados com anjos que haviam se relacionado com mulheres antes do dilúvio, conforme relata o texto de Gênesis 6.1-2.3”. Para ratificar sua fala, cita a posição de Justino Mártir (100-165 d.C.), Irineu de Lião (130-202 d.C.), Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Orígenes (c. 185 d.C.) e Tertuliano (160-220 d.C).
Para o judeu messiânico David H. Stern,
Os espíritos aprisionados são os “anjos que pecaram” (2 Pe 2.4) e “não mantiveram sua autoridade originária” (Jd 6). Isto é, eles são os b’nei-ha’elohim (filhos de Deus os filhos dos anjos), também chamados nefilim (caídos), que caíram de sua própria esfera, o céu, para a terra, e “vendo (...) que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres” nos dias de Noach (Gênesis 6.2-4).4 (Negritos do autor)
Sobre a queda dos anjos, comentando 2 Pedro 2.4, Calvino afirma que
Muitos homens são curiosos e fazem intermináveis investigações sobre essas coisas; visto, porém, que Deus, na Escritura, tocou só de leve nelas, e, por assim dizer, no que interessava, assim ele nos lembra que devemos viver satisfeitos com este pequeno conhecimento. 5
Relembremos o que nos diz o texto de Gênesis 6.1-4:
Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram. Então, disse o SENHOR: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão cento e vinte anos. Ora, naquele tempo havia gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade.
Para os “filhos de Deus” do texto supra, há duas principais interpretações, quais sejam:
I) Trata-se dos descendentes da linhagem piedosa de Sete, em contraposição à linhagem ímpia de Caim denominada “filhos dos homens”. É a versão mais aceita atualmente dentre a cristandade, creio que não apenas por convicção com bases textuais, mas principalmente pela dificuldade em adotar o posicionamento a seguir apresentado.
II) Diz respeito ao anjos, que cobiçaram as mulheres da Terra e com elas mantiveram relações sexuais, dando origem aos gigantes apresentados no versículo 4.
Como argumento favorável à posição de que os filhos de Deus a que se referem Gênesis 6 são os anjos, temos dois versículos do Antigo Testamento, a propósito os dois únicos versículos veterotestamentários que apresentam a expressão "filhos de Deus".
São eles:

Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles. (Jó 1.6)

Tributai ao SENHOR, filhos de Deus, tributai ao SENHOR glória e força. (Salmos 29.1)

Embora somente Jó 1.6 se refira aos seres angelicais de maneira explícita, o contexto de Salmos 29.1 nos leva a depreender que a ordem, em primeira instância, é direcionada a uma assembleia celestial.
Tal posicionamento está também presente na tradição rabínica.
Por outro lado, os que adotam a posição contrária se pautam nas palavras de Jesus registradas em Lucas 20.35,36:
Mas os que são havidos por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos não casam, nem se dão em casamento. Pois não podem mais morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição.

Porém, notemos que a Palavra não nos diz com clareza que as criaturas angélicas são assexuadas, mas apenas que "não casam, nem se dão em casamento". Ademais, outros textos bíblicos nos indicam que tais seres podem perfeitamente assumir a forma humana e agir como nós.6
Quanto à possibilidade de os anjos que pecaram estarem em uma prisão real, João Calvino apresenta a seguinte opinião:
Mas não devemos imaginar um determinado lugar onde os demônios se encontram encerrados, pois o apóstolo simplesmente tencionava ensinar-nos quão miserável é sua condição, desde o tempo em que apostataram e perderam sua dignidade. Pois aonde quer que vão, arrastam após si suas próprias cadeias, e permanecem envoltos em trevas. Sua extrema punição é, entretanto, deferida até o grande dia vindouro.7
Concordo com o questionamento de VanGemeren8, citado pelo Reverendo Leandro Lima, no artigo já mencionado: "Por que cristãos que creem em tantos fatos sobrenaturais da Bíblia têm dificuldade em crer que, de algum modo, anjos caídos se relacionaram com mulheres e foram punidos por Deus?"

Outro texto frequentemente citado com o objetivo de ratificar a descida de Cristo ao Hades é Efésios 4.9,10: “Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia descido até às regiões inferiores da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas.” Calvino, no entanto, discorda dessa posição. Para o teólogo, quanto às “regiões inferiores da terra”,
Estas palavras nada mais significam que a condição da presente vida. Torturá-las a ponto de fazê-las significar o purgatório ou o inferno, constitui uma excessiva estultícia. O argumento que extraem do grau comparativo é por demais frágil. Aqui se traça uma comparação, não entre uma e outra parte da terra, mas entre a totalidade da terra e do céu; como se ele quisesse dizer: “Daquela sublime habitação, Cristo desceu ao nosso profundo abismo. ”9
Particularmente, entendo que o pensamento que mais se adequa à fé cristã e ao contexto da passagem é o primeiro apresentado no presente capítulo: Jesus pregou por intermédio de Noé aos habitantes pré-diluvianos da Terra.
Mas fato é que há várias vertentes teológicas que tentam explicar tais passagens bíblicas, as quais apontam para a descida de Cristo ao Hades. Católicos, Luteranos, Anglicanos, Reformados, Arminianos, cada um com seu ponto de vista, e com seus textos bíblicos selecionados com o escopo de justificar seu posicionamento. Como eu disse no início do presente capítulo, trata-se de um dos textos mais controversos do Novo Testamento. Graças a Deus que nossa salvação não está atrelada à plena compreensão de tais passagens.

1João Calvino. “Hebreus”, p. 238.
2Revista Fides Reformata 4/1, 1999.
3 Revista Fides Reformata XXI N.º 1, 2016.
4 David H. Stern. “Comentário Judaico do Novo Testamento”, p. 820.
5 João Calvino. “Comentário das Epístolas Gerais”, p. 323.
6Exemplos: Gênesis 18.7-8 e Hebreus 13.2.
7João Calvino. “Comentário das Epístolas Gerais”, p. 508.
8 Teólogo, autor e professor de Antigo Testamento e Línguas Semíticas da Trinity International University.
9João Calvino. “Comentário aos Efésios”, p. 93.


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Soli Deo Gloria

Alessandro Silva

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